sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Roménia 2007 - Meu testemunho

Caminhada de Serviço – Roménia 2007 – Avaliação Final

“A Roménia é minha.
Estou disposto a acreditar nisso.
Estou disposto a que todos acreditem nisso.
A caridade com quem precisa, começa quando estivermos dispostos a abdicar de nós em prol de outros.

Viver uns pelos outros...
Viver uns pelos outros para Viver...”

Pelo segundo ano Gherla é o destino...
Um ano depois volto à Terra prometida. Um friozinho na barriga antecipa a emoção de poder voltar a estar entre as crianças de um país que espera por mim. Espera por nós, e por tudo o que lhe quisermos fazer de bem.

Foi já ao final da tarde que o Contingente Português se reuniu na Junta Regional de Leiria, com a louca vontade de dar um pouco mais. São oito os escolhidos por Deus para participar neste projecto. Cinco caminheiros – Sofia, Helena, Ana, João e Neves, acompahados por três Dirigentes – Capitão, Filomena e Eu mesmo (Féérao – como pronunciavam os Romenos).

Os últimos preparativos são revistos e as orações têm especial significado com a participação na missa da noite na Sé de Leiria.

Estamos prontos. Podemos ir.
E assim foi, com uma primeira escala em Madrid, que deu tempo para afinar gargantas e violas para o brilharete da música Portuguesa na Roménia.
A chegada a Bolonha está prestes a acontecer e é nesta altura que perco a circulação no braço esquerdo, vítima de uma adrenalina entusiasta por parte da Filomena que não me largou até o avião estar completamente parado.
Saímos do avião com a esperança que os Escuteiros Italianos não se tivessem esquecido de nos ir buscar ao aeroporto, mas a surpresa chega ao verificarmos que a mochila do João tinha ficado em Madrid... Menos mal, lá levamos um Kit de sobrevivência da companhia, um pedido de desculpas e mais uma história para contar.
Os Italianos eram impecáveis, e como esperado, lá nos distribuímos pelas casas deles, onde dormimos duas noites. Tivemos tempo para conhecer Bolonha e de nos aproximarmos dos Italianos.
Tive a sorte de ficar em casa do Luka, que não falava uma única palavra em Inglês e se recusava a entender as poucas palavras que eu arriscava no meu melhor Italiano. O desafio de comunicar por gestos começou mais cedo do que eu imaginava.

Cedo chega a hora da partida...
De manhã e ainda meios a dormir, entrámos no autocarro que nos leva durante 24h à Terra do Drácula, Gherla.

Nesta altura abro o primeiro parêntesis para explicar o porquê da Roménia...
Solidariedade é algo que podemos prestar na nossa Terra. Porquê ir para tão longe?
Tudo começou com o trabalho desenvolvido, desde há 10 anos, por um grupo de dirigentes do grupo1 de escuteiros da agesci italiana de Civitanova Marche entre outros apoiantes por toda a Itália, que têm vindo a apoiar instituições que acolhem crianças abandonadas e crianças de rua na Roménia, fundando a associação “ I CARE”.
Nos últimos anos a associação “I CARE”, empreendeu uma nova iniciativa mais ambiciosa, de olhos postos no futuro, que pudesse não só suprir as necessidades imediatas, mas mais importante que isso, criar as condições para que estas crianças se possam tornar “cidadãos construtores de um futuro melhor”…

é neste ponto que é pedida a ajuda e surge o convite da associação “I CARE” aos escuteiros italianos, para colaborarem de forma activa na dinamização de actividades com as crianças na Roménia…
…a resposta foi pronta, “…como não aceitar o desafio e a oportunidade de perceber uma realidade tão diferente da nossa, e no entanto tão próxima !...”
“…poderá tal experiência, tão longínqua do nosso quotidiano, ajudar à maturidade dos nossos jovens?...”
…ajudá-los-á certamente a serem homens e mulheres de vanguarda;
pessoas atentas, que recusam ficar indiferentes ao apelo daqueles que mais precisam, serem testemunho da divisa que os move,…SERVIR
…serem testemunho da mudança, e ao mesmo tempo operários da esperança…

Ser um operário de esperança... Palavras importantes para quem servir e dar um pouco mais, são o lema a seguir todos os dias. O escutismo possibilitou algo de fantástico na minha vida. Pertencer a este movimento modificou a minha vida e fez com que a solidariedade fosse um lema para todos os dias. Nos dias quando trago o lenço, e nos dias onde ninguem o vê.


a experiência romena poderá ser a oportunidade dos jovens escuteiros e escuteiras, alargarem horizontes, desejando ver para além das suas esferas de conforto, aprendendo a observar com os olhos do coração…

será talvez o primeiro passo para operar mudanças profundas nos seus estilos de vida, redescobrindo os valores e princípios genuínos do escutismo …

Ao chegar à Roménia, tento acordar da terrível viagem que não tem fim. Ligo a máquina fotográfica e tento disparar a todos os novos sinais de evolução que se fazem notar com a entrada para a União Europeia. Passado algum tempo concluo que está tudo na mesma, tirando as estradas que me parecem melhores, fazendo com que esta última parte da viagem seja mais rápida. Tudo o resto me parece igual.

Chegámos.

Estamos todos dispostos a dar muito com o sopro de alegria de cada um.
Depois de uma rápida instalação na Tekka House, (local onde ficámos alojados) e de uma troca de experiências com o contigente Italiano que seria rendido por nós, realizámos ainda uma rápida visita ao Parque da cidade, local escolhido para dinamizar as actividades com as crianças do antigo Orfanato, que agora estão alojadas em Casas Família.
Logo aí percebi que todos se recordavam de mim do ano anterior. O sinal era simples, as crianças apontavam para mim com o indicador e diziam algo que traduzido é “Eu lembro-me de ti”.
Foi ainda neste dia que revi o Roberto. (Roberto foi a criança que o ano passado me tinha apadrinhado de Pai). A emoção foi grande e ele apenas me dizia “És mesmo tu. Voltaste”
Sem palavras para descrever este momento...

Cedo me apercebi que as carências das crianças continuavam as mesmas. A entrada para a União Europeia fez acabar os Orfanatos e fez criar casas de acolhimento, onde bem vistas as coisas só muda mesmo o nome. Ou seja as crianças agora partilham um quarto com mais oito miúdos, e apenas têm uma sala para todos. Existem casas onde vivem demasiadas crianças e apenas um adulto (geralmente mulher).

A necessidade de escolherem um Pai ou uma Mãe para estar durante uma semana sempre com eles era inevitável, e foi assim que todos fomos escolhidos. Cada criança automaticamente escolheu um membro do contingente para ser seu Pai.

O primeiro dia de actividade chegou e depois de uma programação meticulosa de todas as actividades na noite anterior, fomos divididos em dois grupos de trabalho, onde o primeiro realizava actividades no parque com as crianças das casas de família, e o segundo realizava actividades na Casa Marco Polo, na reconstrução da casa e em actividades com crianças de um Bairro Social para onde se deslocavam em busca de terem alguém que lhes desse carinho, esse bem essencial.
No primeiro dia estive no Jardim, onde as actividades feitas são motivos de alegria e as poucas coisas dadas ás crianças, levam a um abandono mais cedo da actividade para ir a casa guardar um lenço de pirata para pôr na cabeça... é dificil mudar mentalidades ao primeiro dia.
Foi ainda dia para ouvir a bibliotecária falar da União Europeia, da Roménia, de Gherla, do Drácula e do regime comunista. É sempre um prazer ouvir falar alguém que sente o que diz.
Na Biblioteca pude encontar os Maias (Eça de Queirós), os Lusiadas (Luís de Camões) e o Manual de Inquisidores (Lobo Antunes) traduzidos em Romeno. Pena estes estarem presentes na prateleira do Espanhol. Confrontada com isto a Bibliotecária lá prometeu que com mais 20 livros Portugueses ela criava uma prateleira para Portugal. Fiquei de procurar livros de escritores Portugueses e de lhos enviar...
Apenas livros em Romeno, nada de Português, lá me disse ela antes de sair com a morada da Biblioteca escrita na mão.

Cada dia que passava era uma experiência única e diferente de todas as outras, e no rosto das crianças era perceptível esse sentimento. Um sopro de alegria é mesmo o que lhes podemos levar.

Na minha primeira participação no projecto foi-me dito que o máximo que poderíamos levar à Roménia era alegria e para esquecer a esperança, porque uma semana não dá para levar mais que alegria.
Hoje acredito que também levei esperança...

Tivemos ainda oportunidade de ouvir a directora de uma casa que acolhe raparigas grávidas, a Senhora responsável pela casa-família Marco Pólo, e um responsável pela instituição pequeno príncipe...
Os finais de tarde eram sempre passados com visitas programadas a locais extraordinários e de incrível dimensão. Visitámos templos, capelas, igrejas, sinagogas, tivemos oportunidades de falar com muitas pessoas, tirar fotos, rir, chorar e amar tudo o que nos era apresentado.

Durante estes dias alternávamos o nosso trabalho entre o jardim e a casa-família Marco Pólo, onde cada local era um desafio novo e estimulante, onde o sopro de alegria era o serviço e onde um sorriso valia tudo.
A oportunidade única de estar com as crianças que não têm nada e que muito precisam tornou-me a mim em especial, mais Homem na busca do Homem Novo.
A dificuldade da preparação das actividades para as crianças, bem como todos os serões a preparar jogos e brincadeiras que não sabíamos se resultavam no dia seguinte, a ausência de horas para comer e dormir, valeram a alegria na cara das crianças, que contrastou em muito com a cara de tristeza com que ficaram no último dia da nossa estadia em Gherla.
A alegria contrastante com as dificuldades das crianças, a vontade de quererem dar tudo e não terem nada, a entrega e a disponibilidade de todos os que coordenaram o projecto, fazem dele uma obra de arte.
São mais que muitas as histórias que presenciei e vivi, com o sentimento de alegria profunda que me fazia ter as lágrimas bem perto dos olhos. As visitas ao paraíso da transilvânia, as histórias de verdade das crianças, e de mentira dos adultos, um abraço emocionado, os piolhos a saltarem nas cabeças, o dinheiro que nada significa naquela terra, o dia internacional, um país em obras, uma vida diferente...


Os dias passam sem darmos conta disso...
Estou cansado. Estou morto por fora, mas livre por dentro.

O último sábado é reservado para que todas as crianças de Gherla possam partilhar das nossas actividades. Fomos abençados por uma trovoada que não nos deixou fazer nada. Muita chuva que nos obrigou a tentar ficar debaixo de um telheiro que de pouco serviu... Ficámos todos molhados. Fizemos o que pudemos.

A noite é reservada à oração e meditação. Graças podemos dar por estes dias.
E com a ajuda de Marco (Padre Italiano que nos acompanhou), pudemos agradecer a oportunidade de estar ali.

Os últimos momentos chegaram rápido, num acordar misto de sentimentos onde a alegria de voltar contrasta com a tristeza de querer continuar a dar mais...

Tempo para uma última visita à Sinagoga de Gherla, onde o último sobrevivente de um campo de concentração Alemão, faz o relato do que foram os seus dias há 60 anos atrás quando tinha 18 anos e pesava 20Kg. Discurso impressionante de alguém que já não guarda rancor à Alemanha. Acredita nos Homens Bons e nos Maus, e teme pela injustiça. Fantástico.

A despedida foi mais dura que no ano anterior.
Às crianças, é sempre difícil a separação. Espero que este sopro de alegria fique nos vossos corações.

Ao Tibi (Chefe dos Escuteiros Hungaros em Gherla) que me pediu para não me esquecer de Gherla e me obrigou a prometer que voltaria para o ano. O último abraço foi prolongado e cheio de dúvidas na minha cabeça. Gherla precisa de ti disse-me ele na derradeira hora com os olhos cheios de lágrimas...
Ao Roberto (Criança que me apadrinhou como Pai), és tu que me fazes acreditar... Espero notícias tuas...

Todos os dias da minha vida penso no privilégio de poder estar presente nesta caminhada.
Hoje sinto-me mais capaz, mais perto do Homem Novo.

Fui escolhido para estar presente em algo belo que me faz pensar na verdadeira dimensão do serviço, e na capacidade de lhe responder.

“Tudo o que fizermos, não será mais do que uma gota no Oceano, mas se não o fizermos, se não pusermos esta gota no Oceano, ao Oceano faltará sempre alguma coisa, e este Oceano não será tão imenso!...”

Madre Teresa de Calcutá

Obrigado a todos que fizeram da minha caminhada de serviço uma realidade.
Obrigado Roberto porque me fazes acreditar.

Garça-Real
Miguel Ferrão – Agrupamento 170 Sertã
Região de Portalegre e Castelo Branco

2 comentários:

Inês disse...

É realmente comovente todo o teu discurso, sobre o Projecto Roménia. O que no inicio nos leva a pensar que será mais um "relatório", de uma grandiosa actividade de Serviço, tornou.se num relato que me fez ficar com os olhos lavados em lágrimas! Lágrimas de felicidade, de ver alguém a tornar o Mundo Melhor, a subir mais um degrau para atingir esse objectivo, alguém que levou a alegria e a esperança àqueles que mais precisam! A felicidade de ver alguém a ser Homem-Novo!

És um exemplo!

BeijinhoBom

Anónimo disse...

Olá amigo do sopro de alegria... É tão bom partilharmos momentos comuns.. Continua a mostrar ao mundo o que de bom há na vida ;)
Rute (Marrazes)